Ghost Interview

Ele levou a Disney para o Digital

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A notícia pegou parte do mercado de surpresa na semana passada: Bob Iger anunciou a saída do seu posto de CEO da Walt Disney Company – adiantando a aposentadoria em alguns meses. Ele deixou um legado difícil de esquecer: quatro grandes aquisições, lançamento de um serviço de streaming e, principalmente, uma mudança da empresa para um posicionamento “direct to consumer”. Ou seja, mais uma vez, o Ghost Interview colocou as orelhas do Mickey!

Iger entrou no comando da Disney em 2005 com o pé na porta: em menos de 12 meses ele comprou a Pixar. Steve Jobs, amigo pessoal de Iger, chegou a falar que os dois “salvaram duas empresas de uma só vez” com o movimento. Mas Bob não parou por aí: a Disney comprou a Marvel em 2008, a Lucasfilm em 2012 e a 21st Century Fox (e com ela, não só a área de produção de filmes, mas também a ESPN) em 2019. No ano passado, a empresa lançou o Disney+ nos Estados Unidos e Canadá – serviço que já tem 28,6 milhões de assinantes, devemos acrescentar. Tudo isso fez com que o valor de mercado da Disney fosse de US$ 55 bilhões para US$ 250 bilhões no período. Persistente, disciplinado (sério, ele é conhecido por acordar às 4h15 todos os dias para se exercitar e por ser o primeiro a chegar em reuniões), detalhista e objetivo, Iger opera “exatamente como um CEO de empresa de tecnologia” – e essas são palavras vindas de Tim Cook. Mas, e usando novamente das palavras de Cook: “mais importante que todos esses acordos é a visão”.Que tal ler um pouco sobre essa visão?!


MORSE: Bob, qual foi uma das primeiras coisas que você quis mudar assim que entrou na Disney em 2005? E como foi lidar com a “bagagem” da tradição de uma empresa grande e com muitas décadas de idade?

Bob Iger: Até aquele momento, nós víamos as mudanças em tecnologia mais como uma ameaça do que como uma oportunidade. Eu mudei isso porque eu realmente acreditava que a companhia deveria ver a tecnologia como amiga. E isso já fazia parte da empresa originalmente, se quer saber: Walt Disney acreditava muito em tecnologia.

Por muito tempo, existiu uma tensão na Disney entre os “modernistas” e os “tradicionalistas”. Eu firmemente acredito em respeitar as tradições, mas também em me certificar que ela continue a evoluir. Se você é muito preso à tradição, você tende a ser menos inovador. E, vou falar a verdade, uma vez ou outra, os tradicionalistas mais extremos da Disney ainda se levantam para falar.

Você não pode permitir que a tradição atrapalhe a inovação. É necessário respeitar o passado, mas é um erro reverenciá-lo. Eu acabo falando isso bastante na empresa – por exemplo, com a batalha de animação 2D contra o CGI [ imagens geradas via computação].

É uma blasfêmia dizer que 2D é basicamente uma coisa do passado, e a animação gerada por computador é o presente e o futuro? Trata-se de criar uma experiência melhor para o espectador – e isso inclui 3-D.

Fonte: Entrevista à Harvard Business Review na edição de Julho/Agosto de 2011

MORSE: A compra da Pixar foi vista, exatamente, como a Disney apostando em outras formas de animação. Falando um pouco dela – e de inovação, sabemos que você tinha uma relação boa com Steve Jobs, como foi que ele contribuiu para as aquisições e para as mudanças que você trouxe para a Disney?

Bob Iger: Com a aquisição Steve se tornou membro do board da Disney e o nosso maior acionista, e, toda vez que eu queria fazer algum grande movimento, eu tinha que falar com ele. Em 2009, depois da aquisição da Pixar, estávamos interessados em comprar a Marvel. Quando Steve ficou sabendo, ele me falou que não tinha interesse em quadrinhos (“Eu odeio mais quadrinhos do que eu odeio video-games”, ele me falou), então eu trouxe a enciclopédia de personagens da Marvel para explicar para ele esse universo. Ele olhou por 10 segundos, empurrou e me perguntou “É importante para você? Você realmente quer? É uma outra Pixar”.

Muitas pessoas me avisaram que poderia não ser muito bom ter Steve na empresa, que ele seria um bully comigo e com os outros do board. Para mim, isso era loucura, ele era uma excelente adição para a gente. Ele era rápido para julgar as pessoas, e quando ele criticava, ele era bastante duro. Isso dito, ele foi a todas as reuniões de board e participou ativamente, compartilhando um tipo de crítica objetiva que você espera de um membro de board. Ele raramente criava problemas para mim – não nunca, mas raramente.

Quanto à pergunta da Marvel, eu disse para ele que não tinha certeza se seria outra Pixar, mas que eles tinham muitos talentos na empresa, e o conteúdo era tão rico, que se a tivesse a propriedade intelectual, poderia colocar a gente bem na frente da concorrência. Pedi se Steve poderia falar com Ike Perlmutter, o CEO da Marvel, e falar de mim.

Um tempo depois, nós fechamos o acordo e Ike disse que ele ainda tinha dúvidas, e a ligação do Steve tinha feito toda a diferença.

(..)

Com todo o sucesso que a Disney teve desde que Steve se foi, tem sempre um momento no meio da minha animação em que eu penso nele, e eu desejo que ele estivesse por aqui para ver essa realização. Mais do que isso, eu acredito que se Steve estivesse vivo, nós já teríamos combinado as nossas empresas, ou pelo menos discutido a possibilidade seriamente.

Fonte: Parte do livro de Bob Iger “The Ride of a Lifetime” publicada pela Vanity Fair em 18 de setembro de 2019

MORSE: Pixar, Marvel, Lucasfilm… E agora o Disney +, uma ação vista como arriscada pela Disney: afinal, é entrar em uma nova plataforma de distribuição de conteúdo. A gente já fez um Ghost Interview sobre a parte tecnológica do serviço de streaming de vocês, agora você pode dividir com  a gente como foi levantar a parte “business” do Disney+?

Bob Iger: Era incerto criar o streaming. Mas, não fazer nada, realmente, trazia mais incerteza do que fazer. Eu consigo dar exemplos de outras empresas em outros setores e posições semelhantes [à da Disney] nos últimos 50 anos. A Eastman Kodak assistindo ao advento da fotografia digital [sem se transformar] vem à mente. Tornou-se muito claro que a mudança que estávamos fazendo era real e sustentável. Transformação profunda, permanente e irrevogável.

O que eu falei para o meu time de executivos e, depois, para o board foi exatamente isso: “nós não podemos ficar sentados e deixar isso acontecer”. Também vejo um componente do fracasso nas empresas para inovar. E é certo que iríamos passar pelas falhas também, mas tínhamos durabilidade para isso. Passamos por crises econômicas, o impacto global do terrorismo. Você pode voltar nos 95 anos de história da empresa: Houve guerra, a grande depressão. Aqui estamos 95 anos depois. No momento atual, no entanto, parece que nossa capacidade de suportar está unida à nossa capacidade de nos transformar, e não seguir uma estratégia de “Nós vamos superar isso, é uma tempestade que está passando por cima, e quando ela desaparece. Nós ficaremos bem.” Fui claro ao dizer que tínhamos que ser diferentes quando a tempestade passasse!

Ainda como parte do discurso, informei que tínhamos que nos unir e dizer que o período de transformação começaria a se tornar uma necessidade interna e não externa, mas isso iria pedir um reset num número diferente de direções. Nosso board escutou todo o pitch, e eles tiveram uma reação não só unânime, como também muito positiva. Inclusive indicando que queriam que eu acelerasse o processo de transformação.

Primeiro, nós precisávamos da plataforma de tecnologia para, num segundo momento, monetizar e distribuir nosso conteúdo diretamente para o consumidor. Nessa parte específica, a gente foi atrás da BamTech, a plataforma [de streaming] da Major League Baseball. Investimos nela como minoritários, o que nos deu a oportunidade de olhar “embaixo do capô” e testar a tecnologia. Conseguimos determinar se era robusta o bastante e se poderíamos fazer o que queríamos para o nosso negócio nessa direção.

Isso aconteceu em junho de 2016. Já em setembro, conseguimos ter um entendimento grande das oportunidades que teríamos e dos caminhos que teríamos que traçar para chegar nelas. Desde então, a gente não olhou no retrovisor de novo.

Outra coisa que aconteceu: declarei que o Direct to consumer é nossa prioridade número um como empresa. O que levou a umas mudanças no nossa “abordagem de compensação”.

Queria incentivar a nova abordagem e as novas linhas, mesmo que elas não trouxessem receita imediatamente. Exemplo dessa compensação: o estúdio vai criar cinco ou seis filmes adicionais em 2019 para lançar no Disney +. Junto disso, deixaremos de licenciar nossos filmes à Netflix. Então estamos perdendo a receita da licença que ia diretamente para o estúdio, que fazia com que eles crescessem.

(…)

Nós basicamente criamos uma divisão, uma unidade de negócios para gerenciar a plataforma e para levar o produto diretamente ao consumidor. Esse novo setor vai reportar todo o investimento em conteúdo para as novas plataformas.  Essa unidade vai pagar licença, irá licenciar os mecanismos de conteúdo da empresa, conteúdo este que está sendo especificamente para os novos negócios. Então, para os acionistas, fica a visão de crescimento da plataforma.

A unidade da plataforma [de streaming] vai mostrar o nível de investimento – e também de perdas e de possíveis ganhos para as outras áreas. Não é só mais transparente, mas também foi uma forma de mostrar de um jeito mais “mastigado” pra os acionistas. É como se fosse possível medir a Nova Disney e a Velha Disney – mas, no final das contas, é só uma empresa.

O que eu descobri é que, num espaço tradicional, o negócio que quer inovar e gastar para tanto, vai acabar descontando esse investimento dos seus negócios tradicionais. E esses segmentos “tradicionais” acabam sofrendo por ter que custear a inovação. O que deixa todo mundo mais impaciente para fazer o novo negócio virar, a ponto de perder o interesse nas áreas inovadoras, já que não dá para esperar que ela se pague.

Os nossos negócios foram desenhados para que, no futuro, as duas áreas sejam clientes umas das outras e se alimentem.

Fonte: Entrevista à Barron’s Magazine em 4 de janeiro de 2019

MORSE: Ainda sobre o Disney+: como e quando a empresa sentiu a necessidade de investir no digital? E o que foi feito nesse caminho, pensaram em fazer alguma outra aquisição?

Bob Iger: Acordei para isso em agosto de 2015, quando começamos a sentir os efeitos daqueles que estavam parando de assinar a TV à cabo para assinar serviços de streaming, já que a ESPN teve uma modesta queda de assinatura.

Uma das ideias que tivemos, para entrar no mundo digital, foi comprar o Twiter. Chegamos até a fase de acordo em outubro de 2016, mas acabei dando para trás no último minuto, num domingo de manhã. Se eu me sinto aliviado por não ter feito isso? Todos os dias.

Enquanto estávamos nos preparando para lançar, falamos com os heads da Pixar, da Lucasfilm e da Marvel, e afirmamos que iríamos investir US$ 1 bilhão em conteúdo para o streaming, pedimos a contribuição deles e isso aconteceu.

Para a gente, o streaming é absolutamente vital, porque é, sem nenhuma dúvida, o futuro da mídia. 

Fonte: Reportagem da Bloomberg em 7 de novembro de 2019

Eu pensei que tinham responsabilidades que teríamos que assumir ao administrar o Twitter em termos de sua posição e seu efeito no mundo.

Ao mesmo tempo que estava intrigado com o que a plataforma poderia representar em termos de oportunidade para nós, pensei que as responsabilidades nos sobrecarregariam com coisas que seriam potencialmente muito perturbadoras, controversas e desafiadoras demais para administrar.

Fonte: Entrevista à BBC em 2 de novembro de 2019

MORSE: Uma coisa legal que disse ali em cima é que você falou com os estúdios que a Disney comprou para fazer novos conteúdos para o Disney+. (um deles se tornou a série “The Mandalorian”, que viralizou em menos de um dia) Bob, você mesmo já disse ser um assinante da Netflix e da Apple+, como a estratégia de aquisições criou o diferencial do streaming para vocês? Não seria interessante fazer um cross-over com os produtos de parques?!

Bob Iger: Primeiro que o streaming avança no relacionamento direto como os consumidores e permite a criação de novas experiências, mais customizadas e personalizadas com esse cliente. Isso sem contar que o streaming traz novas formas de monetizar, uma proximidade maior com o consumidor que não tem intermediários. Você verá um crescimento nesses D2C.

Eu realmente fico impressionado com o que a Netflix e Amazon atingiram [no mundo do streaming]. Mas, para falar a verdade, nenhum deles é a Disney ou a Marvel. Ou a Pixar. Ou Star Wars. Ou a National Geographic. Ou a FX ou a Fox Searchlight. Sabemos que entramos no negócio que eles já estão operando com uma vantagem do ponto de vista do conteúdo, que nos permitirá focar na qualidade e não só no volume. 

Fonte: Entrevista ao The Hollywood Reporter em 20 de setembro de 2019

MORSE: Por último, essa é uma pergunta nossa: das quatro grande aquisições que você fez na Disney, TRÊS foram de empresas que nem à venda estavam. Quais são as suas dicas para se tornar um bom negociador?

Bob Iger: Um bom acordo precisa ser satisfatório para as duas partes. Eu sempre acreditei firmemente, e isso vai soar um pouco clichê, que a negociação precisa ser uma via de mão dupla. O comprador e o vendedor precisam se sentir bem sobre o acordo, ou pelo menos os dois devem se sentir mal igualmente – essa parte eu não sei dizer direito. Mas acredito que uma boa negociação é conduzida de forma eficiente e eficaz. Não acho que deva ser necessariamente prolongado, porque leva muito tempo e energia. Deve ser aquela em que o valor que é visto pelo comprador é entregue por meio da transação, o que significa que o preço e as circunstâncias devem, de uma forma ou de outra, estar em conformidade com a proposta de valor. Isso é realmente importante.

Eu gosto de ser bastante honesto, gosto de chegar no coração da negociação rapidamente. Gosto de colocar minhas cartas na mesa logo, no lugar de esconder o jogo. E tem momentos difíceis em uma negociação que eu descobri que você precisa levantar e sair andando da mesa, principalmente se os termos não fazem mais sentido. E isso significa arriscar perder o acordo todo se você não achar os termos corretos. Eu já fiz isso muitas vezes. Eu acho que é uma negociação honesta. Não abordo esses negócios com a necessidade de vencer, mas com o desejo de fechar o acordo. Eu acho que isso contribui para o objetivo final e “ganhar”, já que, para mim, vencer em todas as discussões e em todos os pontos e termos não é necessário.

Eu costumo ter uma conversa com outro membro do time que está embarcando na negociação para entender quais são os custos que a aquisição terá. Em outras palavras, eu coloco os parâmetros, as guias e as expectativas, assim dá para saber qual é a melhor hora de abandonar a mesa ou discutir mais.  Eu gosto que todos que negociam em nome da empresa saibam em que ponto é aceitável sair da mesa e, até que ponto, não conseguir o acordo é OK, porque não é mais sustentável ou justificável numa perspectiva econômica.

Fonte: Entrevista ao podcast The Tim Ferriss Show em 27 de janeiro de 2020

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